sábado, 17 de outubro de 2015

Memento Vivere

   Era sábado a noite. Ela poderia estar se preparando para sair, beber, dançar, implorar por atenção e aceitação. Conhecer pessoas, interagir com estranhos, pra no final sentir o mesmo vazio que tinha quando saiu. Mas ela preferiu ficar em casa, só de blusa, sentada no banquinho de couro na cozinha, bebendo energético sabor mirtilo e fazendo as unhas com um esmalte carinhosamente apelidado por ela de "vermelho-piranhão".

   O cabelo molhado, a franja embolada e presa num coque pra não atrapalhar o processo da pintura. Do celular vem o único som do ambiente, fora uma ou outra rajada de tiros vindos do morro. Uma mistura de rap paulista com samba. "É bom variar..." ela pensa e sorri. Os dedos ardem a cada pincelada de esmalte por causa dos "bifes" tirados com o alicate. O vermelho-piranhão se mistura ao sangue das cutículas feridas e ela ri da ironia da coisa, sem saber se o que limpava com a acetona era sangue ou esmalte.

   Ela abre outra lata do energético duvidoso, derrama cuidadosamente na caneca de Butterbeer e abre um saco de batatas, que são retiradas uma a uma, numa manobra arriscada, para não borrar as unhas. Olha para o líquido roxo de sabor curioso na caneca, sorri... "Essa minha mania de comprar qualquer bebida que tenha uma embalagem diferente..."

   A noite está quente. Ela olha pelo basculante da cozinha um prédio próximo, com suas janelas iluminadas e fica imaginando o que estariam fazendo as pessoas naqueles cômodos. Imaginou pessoas conversando e rindo enquanto na televisão o apresentador do jornal fala sozinho, sem ninguém dar atenção e o ventilador no teto gira preguiçosamente. Distraída, ela olha de relance para sala do próprio apartamento. As luzes apagadas e a televisão desligada. Mas isso não a entristece, afinal, o que há de errado em ser feliz consigo mesma? O que há de errado em apreciar os momentos mais irrelevantes como se fossem os mais importantes do mundo? Todo momento, bom ou ruim, é feito do mesmo material, o Tempo. Todos são parte de um mesmo todo, tudo é vida. O que os distingue é a importância que você dá a cada um...

...as latas de energéticos acabaram, e o conteúdo da caneca também. Ela segue pro seu quartinho, o computador ligado. Senta na cadeira desconfortável de madeira, e pára um instante para apreciar o mundinho que ela criou, e recriou, reinventou, e reconstruiu. Sua pequena bagunça, seu refúgio. Seu, e só seu. O pensamento a faz se sentir segura, ela fecha os olhos e suspira profundamente, sentindo um abraço invisível... Memento Vivere...

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